quarta-feira, 29 de junho de 2011

100 anos de Bernard Herrmann (ou Como Dei Com a Cara na Porta do Municipal)

por Ricky Nobre


Há cem anos (29 de junho de 1911) nascia Bernard Herrmann. Ele não era o compositor mais bem sucedido de Hollywood do ponto de vista comercial. Apesar de altamente conceituado, não era o favorito dos produtores e, para piorar, suas composições jamais poderiam ser simplificadas para vender discos, pegando carona no sucesso dos filmes. Suas orquestrações eram incomuns, suas melodias, inacabadas, seus padrões de qualidade, rígidos. Apesar disso, os filmes em que participou estão entre os mais bem sucedidos, tanto de público quanto de crítica e, ainda por cima, pasmem, sua composição mais radicalmente inovadora se tornou até toque de celular.

Começando no rádio como orquestrador e diretor musical, lá conheceu Orson Wells que, ao começar sua carreira no cinema, tratou de levar o amigo consigo. Desta forma, Herrmann iniciou sua carreira cinematográfica já com um clássico dos clássicos: Cidadão Kane. A partir daí, Herrmann teve uma carreira surpreendentemente diversificada, compondo para filmes épicos (O Egípcio), aventuras (As Neves do Kilimanjaro), dramas (Jane Eyre), ficção científica (O Dia em que A Terra Parou) fantasia (Jasão e os Argonautas) e até televisão, algo impensável para um profissional já estabelecido no cinema, ao compor para sete episódios de Além da Imaginação.

Mas foi seu encontro com Alfred Hitchcock que eternizou seu trabalho. Nos oito filmes em que colaboraram, Herrmann pode levar seu estilo a um extremo só possível na medida em que ele se encaixava com perfeição na própria obra hitchcockiana. Suas melodias inacabadas (sem a as notas típicas da conclusão melódica, que dão uma inconsciente sensação de “alívio” ao ouvinte) não apenas sublinhavam, mas intensificavam a sensação de ansiedade, suspense e inquietação das cenas. Em Um Corpo que Cai, o tema que amor unia uma série de belíssimos temas que se encadeavam sem jamais se concluírem, enfatizando a tortura e o desespero do personagem de James Stewart em frente a um amor que jamais poderia ser resolvido, enquanto o tema principal se desenvolvia numa estrutura espiralada, repetitiva, enfatizando a sensação de vertigem da qual o personagem sofria e a obcessão mórbida que o consumia.

Mas foi ao realizar Psicose, filme que levou ao ápice a experimentação de Hitchcock no conceito de “cinema puro”, que Herrmann pode se “espalhar” como nunca antes ou depois. Economizando nos diálogos e no orçamento, o filme se baseia quase que inteiramente nos elementos técnicos de fotografia, montagem e música para criar suspense, medo, angústia e pavor. Hitchcock teria chegado a dizer a Herrmann: “O terceiro rolo é seu”, tamanha a confiança que ele tinha em entregar uma sequência de 20 minutos praticamente sem diálogos nas mãos do compositor, que compôs 58 minutos de música, criados exclusivamente para orquestra de cordas. Com a cena do chuveiro, no entanto, Hitchcock resolveu se apoiar exclusivamente na montagem e nos efeitos sonoros, sem música. Herrmann teve que compor e gravar escondido e apresentar o tema pronto para convencer o diretor que era possível que uma composição musical melhorasse a cena idealizada por ele. Ali nascia uma nova era da música do cinema. Assim com Psicose é a gênese de todos os slasher movies, a música do chuveiro foi a primeira composição totalmente atonal composta para cinema e pavimentou toda uma escola de composição cinematográfica de horror nas décadas que se seguiram.

Infelizmente, sérios problemas durante a produção de Marnie, Confissões de uma Ladra e o fracasso comercial do filme abalaram a confiança e a insuspeitavelmente frágil estrutura psicológica de Hitchcock, que sucumbiu às pressões do estúdio e demitiu Herrmann durante as gravações da trilha de Cortina Rasgada. A briga foi séria e Herrmann, magoado, mudou-se para Londres, onde realizou uma série de gravações históricas para o selo London e colaborou com cineastas europeus que o admiravam, principalmente François Truffaut. De volta aos EUA, compôs para novos talentos, como Brian de Palma e Martin Scorcese. Para este, trabalhou em Taxi Driver, seu último filme. Dois dias após concluir as gravações da música, veio a falecer, na noite de Natal de 1975.

Por ocasião de seu centenário e da mostra as obras completas de Hitchcock exibida no CCBB (Centro Cultural do Banco do Brasil), o Theatro Municipal do Rio de Janeiro programou um evento espetacular: a projeção de Psicose com música executada pela Orquestra Sinfônica Brasileira. Com ingressos comprados, cheguei ao teatro na noite de sábado, dia 25 de junho, na companhia de minha namorada, para darmos com a cara na porta. Apagado, com portas fechadas e sem nenhum funcionário para dar satisfações, nós e várias pessoas perguntávamos uns aos outros o que estava acontecendo.

Esta era apenas mais um capítulo na crise da OSB, que ainda não fez nenhuma apresentação no Theatro Municipal este ano. Ao procurar a bilheteria do teatro nesta quarta-feira, me surpreendi ao ter meu dinheiro devolvido, não apenas para o evento não realizado, mas também para dois concertos que já havia adquirido para o fim do ano; um que incluía a estreia nacional da suíte de Bernard Herrmann para Um Corpo que Cai em outubro e outro com composições de Nino Rota (compositor de Felini) e Ennio Moricone (maior compositor de cinema italiano) em dezembro.

Ao que tudo indica, a Orquestra Sinfônica Brasileira passará o ano de 2011 em brancas nuvens, isso se conseguir sobreviver. Sim, a OSB, como a conhecemos, está ameaçada de acabar. Detalhes sobre a crise que escandalizou músicos de todo o mundo você verá em breve aqui no blog!

ABERTURA DE PSICOSE (PSYCHO, 1960)



ABERTURA DE UM CORPO QUE CAI (VERTIGO, 1958)


4 comentários:

Renato Rodrigues disse...

Quando eu li o título, pensei "Putz, fizemos o Ricky perder o concerto!". É que ele saiu daqui correndo no sábado, depois do Workshop que acabou terminando mais tade que o esperado.

1) Ainda bem que não foi por causa disso.

2) Aguardo anciosamente pelo desenrolar dessa história de mistéio e de suspense sobre a OSB.

3) Ótima matéria! Aula de cinema!

Patrícia Balan disse...

Chocante. A OSB, tão venerada internacionalmente está passando por uma crise medonha difícil de resolver. O pior é que é tudo tão centralizado que o teatro municipal vai ter que rebolar para continuar com suas apresentações. Ainda bem que o grupo de índios colombianos do Chile continua disponível lá na Cinelândia. Pelo menos é uma alternativa.

Enquanto isso o tema de Vertigem me pegou no meio de um estudo de Geometria Sagrada. Eu fiquei vendo as elipses e os caleidoscópios tão bonitinhos e Zens... Tinha esquecido dessas imagens com essa música medonha e fascinante.

Nanael Soubaim disse...

Cultura e bombeiros não são essenciais, o relativismo psicótico do Estado em vigor já deixou isso claro.

Ariadne Barbosa disse...

Maravilhoso seu post, Ricky!

Paty, não só temos o grupo de colombianos na Cinelânia como também próxima da Estação de Madureira...rs

É muito triste saber que a OSB se encontra nesse estado, cancelando espetáculos. Isso é algo que deveria aparecer mais na mídia e ter ampla divulgação.

A trilha de Hermann é angustiante em Vertigo...parece que vamos cair de tão tontos a qualquer momento e representa mto bem, como o Ricky mesmo disse, toda a angústia que o personagem de Stewart sofre.